Tira nº 249 – CiEL#0146
Transcrevemos abaixo excertos das notas do espectáculo, traduzidos para português.
Gritos de Liberdade – Memória de Tian’anmen
Proposta de Intenções, por Ewa Biernacka
As imagens da repressão na Praça de Tian’anmen, em Beijing, ao movimento de cidadãos que clamava liberdade e democracia, marcaram a minha adolescência, numa altura em que o meu país acompanhava o desmoronar do Bloco de Leste, e se livrava da doença infecta do comunismo.
Durante a minha carreira de actriz e performer procurei a oportunidade de exprimir com o meu corpo toda a revolta que senti, e sinto ainda, por saber que existem ainda milhões de pessoas agrilhoadas por regimes totalitários.
[…]
No Verão de 2007, encontrei por coincidência a Alicja Sobczak no Algarve, em Portugal, ao lado de um sujeito extremamente peludo. […] Já tínhamos trabalhado juntas e naquela altura, enquanto desenvolvia o conceito da performance “Gritos de Liberdade”, pensei que ela poderia ser a pessoa ideal para contracenar comigo. Precisava de uma pessoa de espírito forte, mas também com um corpo robusto e saudável, para poder encarnar todo um povo reprimido, cujos direitos cívicos eram selvaticamente violentados. Fiquei muito contente quando ela aceitou o convite.
[…]
Como encenadora de performances de baixo orçamento sempre dei valor à simbologia. Uma razão é o modo como estimula a inteligência de cada espectador a fazer a sua própria associação, complementando as intenções do autor; a outra o facto de ser muito mais barato do que, por exemplo, meter um exército e dez tanques de guerra no palco de um teatro.
Eu penso que a simbologia em “Gritos de Liberdade” fala por si. De facto, há também a mera representação – como é o caso da faixa que diz “democracia” e da bandeira com “liberdade” – mas o essencial é representado pelo godemiché vermelho, símbolo máximo da repressão, da violência, mas também da falocracia fascista que não domina só a RPC, como grande parte do mundo […] (*)
Para o godemiché optámos pelo modelo maior distribuído pela Dildo’s ‘R’ Us, o Mandingo XL (deluxe), o qual adaptámos, dando-lhe coloração vermelha. […] Eu acho que é um excelente godemiché, sendo pena que o público só o veja bem por breves momentos, no início da performance, e no final, antes do pano cair, quando me ergo para agradecer os aplausos.
Os jornalistas perguntam sempre qual o significado das sandálias Birkenstock. A intenção é passar um recado a uma certa esquerda pós-moderna e liberal, bem na vida, e acomodada – no fundo burgueses reprimidos –, a qual, por vezes, não só hesita em condenar regimes como o da RPC, como ainda acha que não têm nada de mal e que se calhar a Coreia do Norte até é uma espécie de democracia.
[…]
Infelizmente, apesar de tanto eu como a Ewa termos ficado muito satisfeitas com a recepção que a performance tem tido, vamos ter de lhe colocar um ponto final. Ela diz-se exausta e reclama que, no final das três horas e doze minutos, nem sequer se consegue levantar para agradecer. Sugeriu-me que alternássemos os papéis, mas expliquei-lhe que como autora e encenadora preciso de assumir o controlo total, e que não ia meter nenhuma fita ridícula no cabelo.
Agradecemos ao Teatr Wielki Ópera Nacional a disponibilização da informação apresentada.
(*) Há um erro óbvio no texto, como o leitor atento terá notado: a faixa diz “liberdade” e a bandeira “democracia”, e não o contrário.